Reportagens

Nadando com gambás 1h6l1a

Pesquisadores no Rio de Janeiro estudam um gambá diferente dos demais. Ele é semi-aquático, tem características bem incomuns e só vive em ambientes preservados.

Juliana Tinoco ·
2 de setembro de 2005 · 20 anos atrás

Para uma imaginação fértil, vasculhar um rio à noite, à procura de um mamífero meio aquático meio terrestre, pouco conhecido pela ciência, que tem seis dedos em cada pata dianteira e as traseiras parecidas com um pé-de-pato, soa como uma missão assustadora. Mas nada como o conhecimento para clarear as coisas.

Sobre o gambá d’água, eu só sabia que tinha características únicas para sua espécie e estava sendo pesquisado por um grupo de dezoito alunos de mestrado e iniciação científica do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Em agosto, acompanhei uma excursão do grupo de pesquisadores em busca do bicho. A expedição foi em uma fazenda em Gaviões, distrito de Silva Jardim, no estado do Rio de Janeiro. Meus companheiros, três integrantes do projeto que estuda o Chironectes minimus: Maron Galliez, Camila dos Santos e Leandro Macedo. Meu objetivo pessoal: conseguir ver o gambá, tarefa nem sempre fácil. Camila, antes mesmo de chegar à fazenda, tenta me animar: “É provável que a gente encontre um. Se não, sete já foram capturados e receberam colares. Somos capazes de rastreá-los com um rádio-transmissor”.

Mas afinal, o que tem esse gambá de tão especial? Para começar, é o único marsupial semi-aquático conhecido. Sai durante a noite para se alimentar, voltando para a terra apenas para se entocar durante o dia. Para isso, desenvolveu transformações morfológicas que o diferenciam dos demais. A fêmea tem uma bolsa que se fecha hermeticamente para proteger seus filhotes da entrada de água. Ao contrário dos outros marsupiais, o macho também conta com uma bolsa, para proteger seu saco escrotal do frio. É também o marsupial que, proporcionalmente ao tamanho da cabeça, possui o maior cérebro.

O corpo tem um padrão de manchas pretas e brancas que o ajudam a ser confundido com o fundo do rio, servindo para a proteção. As patas traseiras (foto acima) têm membranas interdigitais, como num pé-de-pato, que os auxiliam a nadar. Já a pata dianteira (foto ao lado) assemelha-se a uma mão humana, mas com direito a um sexto dedo ósseo surgindo do pulso, que aparentemente funciona como um polegar opositor. É o único animal conhecido que faz uso de um sexto dedo ósseo. No focinho, um bigode bem longo, chamado de vibriça, ajuda a capturar o alimento através da percepção do movimento na água. O rabo também é adaptado para o meio aquático, assemelhando-se ao de um réptil. Os pêlos têm a capacidade de secagem ultra rápida.

O Chironectes já foi registrado desde o sul do México até o norte da Argentina. No Brasil, só foi encontrado nas regiões sul e sudeste. O projeto que estuda o bichinho, além de outros marsupiais, é coordenado pelo professor Fernando Fernandez e começou em abril de 2004. Conta com financiamento das ongs Critical Ecosystem Partnership Found (CEPF), Conservação Internacional e Fundação O Boticário de Proteção à Natureza. Até o ano retrasado, não existiam estudos sobre o gambá no Rio de Janeiro.

A vida dos pesquisadores envolvidos no projeto não é nada simples. O Chironectes não se deixa capturar com facilidade e, por ser um animal ainda pouco conhecido, têm em seus hábitos um mistério para os biólogos. “Não temos conhecimento de outras pessoas que estudam o Chironectes porque nada ainda foi publicado sobre ele. O que temos de informação é muito pouco”, conta Camila. Mal chegamos no sobradinho emprestado para o projeto pela bióloga Cecília Amorim de Freitas, dona da fazenda Reserva Botânica das Águas Claras, e já saimos para o rio, localizado na propriedade. A cada expedição, são colocadas 24 armadilhas, em 12 pontos diferentes do rio.

Como não se sabe ao certo do que os gambás de alimentam, as armadilhas não podem conter iscas, o que dificulta a captura. A esperança é de que algum caia nelas acidentalmente durante a noite. Mesmo após serem capturados, as dúvidas permanecem. “Ao contrário da maioria dos marsupiais, que literalmente se cagam de medo quando são pegos, nunca conseguimos coletar as fezes de um Chironectes. Mas acreditamos que eles se alimentem de caranguejos, pitus e peixes”, revela Camila.

As armadilhas são colocadas em locais do rio onde é possível construir uma espécie de mini-represa usando pedras (foto). Dessa forma, o gambá é levado pela água até elas, e, com sorte, pisa em um pedal que aciona o equipamento.

O rio escolhido para as capturas obedece ao critério de aparição do gambá, mas também leva em consideração a segurança do local. “Evitamos áreas onde sabemos que há caçadores”, conta Maron.

Na primeira noite, tentamos flagrar um Chironectes já conhecido sair de sua toca. Após duas horas dentro do rio, em absoluto silêncio e escuridão, voltamos para casa sem vê-lo. O rádio-transmissor usado para localizar o animal estava quebrado. Mas o dia seguinte seria de sorte grande. De volta ao rio, de manhã bem cedinho, logo na primeira armadilha, escuto um grito: “Pegamos um!”. A satisfação geral não podia ser maior. Ou melhor, podia. Era uma fêmea e, ainda por cima, com filhotes. Em mais de um ano de projeto, nunca haviam capturado uma.

O procedimento após a captura é simples. O gambá é retirado da armadilha e colocado num saco de pano. É pesado e tem sua idade avaliada com base na dentição e no tamanho do rabo. Depois ganha um brinquinho identificador e um colar que permitirá que ele seja rastreado através do rádio-transmissor. Por último, um pequenho corte na orelha resulta em material para futuros testes de DNA. Por estarem dentro da bolsa da mãe (foto), não foi possível dizer ao certo quantos filhotes eram, mas os pesquisadores estimaram uns três ou quatro. Ótima notícia, em se tratando de um bicho ameaçado de extinção.

Devo assumir que, após conhecê-lo pessoalmente, descobri que o gambá d’água é um animal pra lá de bonitinho. Além do mais, a idéia geral de que os gambás exalam mau cheiro é um preconceito infundado. “A imagem que as pessoas têm na cabeça de que gambá fede foi construída pela Disney”, conta Maron. Na verdade, o dos desenhos animados nem é um gambá. É outro tipo de mamífero, do gênero Conepatus, um carnívoro próximo das lontras e dos cachorros. Aqui no Brasil, ganhou o nome de cangambá ou jaritataca e usa o artifício do fedor para espantar predadores.

Além de ser irável do ponto de vista fisiológico, o Chironectes serve como um indicador da qualidade da água. Os pesquisadores acreditam que ele vive apenas em rios extremamente limpos, onde a mata ciliar é bem preservada. Mas para confirmar as relações ecológicas do bicho, o projeto precisa ainda descobrir minuciosamente seus hábitos: o que come, como se reproduz, que distância percorre quando sai da toca e, principalmente, quais são as características dos rios em que moram.

Depois da fêmea e seus filhotes, nossa excursão a Silva Jardim encontrou mais um gambá macho. Com eles, o número de animais com colar de rastreamento subiu para nove. Mas ainda resta muito a ser pesquisado. Apesar da trabalheira de ar noites no mato, metendo-se dentro d’água, sofrendo com o frio, Maron, Camila e Leandro não têm queixas. Na verdade, não vêem a hora voltar pra lá, e conhecer um pouco mais sobre seus estimados gambás.

  • Juliana Tinoco 3h6r3l

    Juliana Tinoco é jornalista multimídia especializada na cobertura de Meio Ambiente, Ciência e Direitos Humanos. Por quinze an...

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